Curriolas, Trouxas, Muquifos, “pé-pé-pé…pé-ré-pé-pé”, Joguinho Ladrão!!!

Durante anos, apesar da leitura de fragmentos e textos esporádicos, sentia o interesse por me aprofundar na obra do escritor João Antônio Ferreira Filho (1937-1996).

Entre uma leitura aqui e outra ali, os livros de João Antônio ficaram para trás. E o tempo passou.

Até que percorrendo uma dessas redes sociais, deparei-me com um comentário sobre o escritor que entre outras palavras empurrava um “datado e ponto final”. Como?! Estranhei.

Motivado pela opinião pouco amistosa do internauta, a leitura do livro de contos “Malagueta, Perus e Bacanaço” (1963) tornou-se uma prioridade.

A análise a seguir limita-se a algumas reflexões sobre o conto homônimo.

“Malagueta, Perus e Bacanaço” foi o livro de estreia do escritor João Antônio. Dada a qualidade literária e à inovação em relação ao tema e à linguagem (ele trazia para o texto o modo de falar das ruas e dos jogadores de sinuca), conquistou público e crítica. Como consequência conseguiu simultaneamente dois prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos), entre outras premiações.

Houve uma adaptação do texto para o cinema na década de 1970. Trata-se de “O jogo da vida” (1976), dirigido por Maurice Capovilla. O roteiro foi de responsabilidade de Capovilla, além do próprio João Antônio e de Gianfrancesco Guarnieri. O filme é estrelado por Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Maurício do Valle. Na trilha sonora, músicas de João Bosco e Aldir Blanc.

No conto, o leitor acompanha os três personagens, apelidados como Malagueta, Perus e Bacanaço ao longo de uma noite. São três malandros, que, entre outras atividades ilícitas, ganham a vida nas mesas de sinuca através da prática de trapaças e conluios. Motivados pela falta de dinheiro (“Estavam os três quebrados, quebradinhos…”), pelo pouco movimento e pela ausência de trouxas/otários em um salão localizado no bairro paulistano da Lapa, o Celestino, decidem sair dali. Percorreriam as ruas, bares, botequins e os salões de jogos de sinuca à procura de indivíduos que eles identificassem como trouxas, otários, coiós, mocorongos, papagaios enfeitados e cavalos-de tetas.

“Os três tacos, direitinhos como relógios, levantariam no fogo do jogo um tufo de dinheiro. Tinham a noite e a madrugada. Virariam São Paulo de pernas para o ar.”

Embora malandros, existia regras e certa lealdade entre eles. Há uma passagem do texto na qual somos apresentados à história de Bacalau. Era um malandro que, de forma descarada, ganhara o dinheiro de Sorocabana, um trabalhador da estrada de ferro. “Para que trouxa quer dinheiro?”. Entretanto, Bacalau, por egoísmo ou esquecimento, não oferecera nenhum mimo para a curriola. Quando precisava, ele sabia que podia contar com o grupo. Dois dias depois, através de denúncia anônima, foi preso pela polícia.

A história se passa numa São Paulo da década de 1960, onde ainda circulavam bondes pela cidade. O filme transporta os personagens para a década de 1970. Os bondes sumiram, todavia, todo aquele painel sociológico apresentado por João Antônio ainda se fazia presente, como também, com certas mudanças e novos acréscimos, ainda persiste nos dias de hoje.

Em volta das mesas de sinuca e dos botequins, além dos jogadores, existia um mundo por onde circulavam os indivíduos menos favorecidos, trabalhadores, mascates e operários advindos das classes sociais mais baixas e das periferias, assim como crianças e adolescentes lutando pela sobrevivência. Outros tipos compunham esse universo: homossexuais, estudantes de escola noturna, cafetões, prostitutas, pedintes, batedores de carteira, traficantes, policiais corruptos, etc.

“Gente. Gente mais gente. Gente se apertava […], gente que vem ou gente que vai.”

A história contada não é amena. Os personagens não são pitorescos, engraçados ou caricatos. A pobreza e a miséria tanto daquela época como a de agora ainda tem elementos desconhecidos, mascarados. Não se restringem a lugar específico ou datado. Os seres que aí habitam, no entanto, não estão conformados, paralisados. Eles lutam, sofrem e se irritam com aquele mundo que os prende, mas que é o único que conhecem e que lhes oferece alguma coisa em troca.

No conto, João Antônio não descreve, entretanto, uma luta de classes, ele apenas nos apresenta uma realidade vivida por certa parcela da sociedade, muitas vezes invisível. Não há julgamento ou idealização.

No filme o personagem Perus apresenta outras características que o conduzem ao questionamento da desigualdade social e da exploração no trabalho. Em “Malagueta, Perus e Bacanaço”, ele é retratado como um jovem de dezenove, “fugido do quartel”, havia saído de casa devido a problemas de relacionamento com o padrasto. Em “O Jogo da Vida” ele é um homem inconformado com o trabalho penoso numa fábrica de cimento, que abandona tudo para tentar a sorte no jogo.

Há uma ausência de humor na trajetória dos três personagens no texto. Em “O Jogo da Vida”, Capovilla se vale um pouco desse recurso na composição de Malagueta, talvez para criar uma dinâmica da qual o conto não necessite.

Parece-me que a noite descrita em “Malagueta, Perus e Bacanaço” é mais opressiva do que em “O Jogo da Vida”. Entretanto, em ambos, a feiura de tudo e todos remete para a nostalgia, a beleza e a poesia.

J. Campos

26-02-18

2 comentários em “Curriolas, Trouxas, Muquifos, “pé-pé-pé…pé-ré-pé-pé”, Joguinho Ladrão!!!

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