Destaque

Entre Copos d’água e Desmaios

Quando Clóvis decidiu, por vontade própria, morar na casa de repouso, Mário já vivia ali há cerca de cinco anos. Depois de um esbarrão no corredor, um “oi” aqui e um “como vai?” ali, não demoraram a fazerem amizade. Tinham muito em comum. Eram viúvos, avôs e solitários dentro de seus núcleos familiares.

No caso de Clóvis, fora a filha com marido, filhos, cachorro e dois gatos quem se mudara para sua residência. No entanto, em pouco tempo, ele se transformou no hóspede indesejado na própria casa.

Aparentemente, sofrera menos com a passagem do tempo, ao passo que Mário parecia ter carregado o mundo nas costas. Cada qual, a sua maneira, havia abandonado ou sublimado sonhos e desejos ao longo de suas vidas em troca de aceitação e dependência afetiva. No entanto, a convivência entre ambos produzira um verdadeiro milagre. Tornaram-se mais alegres e saudáveis.

Ao perceber o resultado, a filha até insistiu para que ele voltasse a morar com ela.

– Não, você tem a sua família… Estou bem, quero ficar aqui, por enquanto.

– Pai! Todos nós te amamos. Volte a morar conosco. Seu lugar não é aqui.

– Preciso de sossego…

Abraçaram-se longamente e se despediram.

Três filhas. Rute, a caçula, esforçava-se mais que as outras para demonstrar afetividade. Sim, ele conhecia muito bem cada uma de suas crias.

Ela lecionava matemática numa dessas escolas caras de gente rica. O marido engomadinho era proprietário de uma loja de automóveis. Com a ajuda da ciência, depois de várias tentativas, colocaram filhos gêmeos no mundo. Terríveis, chatos, insuportáveis! Clóvis lamentava, mas queria distância dos netos adolescentes.

Casal moderno, decolado, não se cansavam de buscar ascensão social. Frequentemente ofereciam jantares e festas para amigos, conhecidos, potenciais clientes e sócios. Não desperdiçavam uma oportunidade.

Gostavam de viajar e de consumir. Davam a impressão de terem dinheiro sobrando, mas não pagavam nada para morarem no imóvel de Clóvis. Gente folgada!

As outras filhas possuíam um medo exagerado de que ela herdasse tudo sozinha. As brigas eram constantes entre elas. Nem suspeitavam da surpresa que lhes preparava em relação à herança.

Rute fora chamada pelo diretor da casa de repouso. Assunto urgente! Ela se assustara. Quase batera o carro durante o percurso, tamanho o desespero. Nem avisou as irmãs. A casa! A casa! A casa! O estômago revirava.

A secretária a acalmou de imediato.

– Ele está bem! Bem até demais, ironizou. Espere aqui, vou chamar o seu Gilberto para conversar com a senhora.

A secretária apontou displicente uma mesinha com café, chá e biscoitos. Saiu.

Não havia nada mais a fazer, além de esperar. Sentou-se num sofá ao lado de um rapaz, sem cumprimentá-lo.

– Oi! Eu sou João, filho do Mário.

– Prazer…

A imagem da casa não lhe saía da cabeça. Ela despendera ao longo dos anos muito trabalho para tentar convencer o pai a deixar-lhe o imóvel. Puxara o saco e se fizera de boa à exaustão. Não era justo perdê-lo agora. As irmãs que se ferrassem.

Olhou para o moço e torceu o nariz. Lembrou-se que o tal de Mário era amigo de seu pai.

– Sabe do que se trata?

– Não, não me adiantaram nada. Deve ser alguma bobagem. As pessoas daqui adoram fazer tempestade em copo d’água.

A mulher apenas balançou a cabeça afirmativamente.

Nesse instante, surgiu o seu Gilberto, o diretor da casa de repouso, visivelmente estafado. Convidou-os a entrarem em sua sala e não fez rodeios, foi direto ao assunto:

– Precisamos tomar algumas decisões urgentes. Seus pais estão mantendo um relacionamento homossexual em meu estabelecimento.

Depois de um olhar de “eu não entendi”, a ficha caiu. Rute soltou um gritinho e simulou um desmaio. Rapidamente, o rapaz tentou reanimá-la. O diretor apenas franziu o cenho.

João estranhou, mas depois achou engraçado. Uma onda de contentamento meio que lhe percorreu o rosto. Depois de quinze anos de solidão, seu velho finalmente resolvera namorar. Com certeza era isso que o estava deixando com um aspecto melhor. Ficara mais falante, menos enrugado. Nossa! Até ganhara uns quilinhos. Quem diria?!

Rute continuava tonta, mas pegou o copo d’água que a secretária lhe oferecia.

Aquilo era um sonho, um pesadelo, uma piada. Imaginem só! O seu pai tendo um caso com outro homem! Ele gostava de mulher, pois sempre tivera fama de mulherengo! Que absurdo! Como um homem daquela idade, pai e avô se tornaria gay de uma hora para outra? Fez cara de nojo. Gordo, careca e barrigudo! Usava uma barba horrorosa e ainda havia aquelas sobrancelhas grossas. Como um homem daqueles despertaria desejo em outro homem? Ridículo!!!!

– Que brincadeira de mau gosto! Como pode me fazer perder meu tempo à toa? Nunca poderia pensar que o senhor, seu Gilberto, faria um papel desses!

O diretor bocejou impaciente. Apontou para a janela. De lá poderiam constatar com os próprios olhos uma cena peculiar do dia a dia.

O casal caminhou em câmara lenta. João torcia para que fosse verdade e Rute por um desagradável engano. Um jardim foi-se revelando aos poucos. Por lá passeavam algumas figuras joviais e falantes, outras tristes e com o olhar perdido em algum lugar do passado. Havia aqueles que precisavam de apoio para caminhar ou da ajuda das enfermeiras e assistentes para realizarem atividades simples. Naquela manhã ensolarada, quem não participava da aula de dança, caminhava sem preocupação pelo jardim.

Os dois homens estavam abraçados, sentados num banco observando o que acontecia ao redor. Mário apoiava a cabeça no ombro de Clóvis. Conversavam algo, serenos. Num dado momento se entreolharam e seus lábios se tocaram num beijo apaixonado.

Rute deixou o copo d’água cair no chão.

J. Campos

Barueri, 05-07-2018

 

Liberdade

Roldan-Roldan David Haize

Liberdade I

Bela como Afrodite

sábia como Palas Atena

sobrevoa

bunker

igreja

caserna

fórum

superior

absoluta

suprema Liberdade

– Poeta em que época você vive?

01-05-22

Liberdade II

Acima de tudo

trona

próxima do Absoluto

generosa como o amor

vasta como o pensamento

elegante como a magnitude

invencível Liberdade

– Poeta que idade você tem?

01-05-22

Liberdade III

Nobre

digna

altiva

transparente

inigualável

inexpugnável

Deusa do Universo

única

sagrada

gloriosa Liberdade

– Poeta em que mundo você vive?

01-05-22

Ver o post original

Meus Mortos

R.Roldan-Roldan Writer (novels, short stories, theatre, poetry) Brazil

Meus Mortos

E surgem meus mortos

amados

pais irmão amores parentes amigos

vindos de espaços límbicos

trazidos pelo simum

até a imensa planície

árida

onde vestidos de chamas

bailam a Dança do Fogo de Falla

soltando faíscas

revoada de antigas paixões

não é noite não é dia

a angústia da saudade crava suas garras

e sangra o sopro

enquanto a música ressoa na memória

e grava a insignificância de existir

no que já foi

29-08-21

Ver o post original

O Perfume

David Haize

O Perfume

Uma noite de lua-cheia

madrugada de insônia

descobri um perfume

envolto na membrana do passado

nas pregas da alma

tentei traduzi-lo à poesia para entendê-lo

tratei de vertê-lo à música para ouvi-lo

quis transmutá-lo em pintura para visualizá-lo

vãs tentativas

de uma mente inquieta que não conseguiu elucidar

o mistério do perfume da alma

denso como o silêncio

tão enigmático quanto a vida

28-09-21

Ver o post original

Quando Zarpa o Navio de Tânger?

David Haize

Quando Zarpa o Navio de Tânger?

Ibn Battuta

o sábio

grande viajante de Tanjah

diga-me

a que horas sai o próximo barco de Tânger?

meu irmão quer partir

para a América do Sol

virar guerrilheiro

conhecer Angelopoulos e Kieslowski

e ganhar algum dinheiro

por que quer ele fugir?

se seu único crime é apenas ser

filho de um anarquista apátrida?

amado menino tanjaoui

puro como o pai

que culpa tem ele?

vem mano vem

vem ouvir a Tocata e Fuga em Ré Menor de Bach

antes de pegar o barco de Caronte

vem voltar para se curar da infância

diga-me Ibn Battuta

quando sai o próximo navio para Tânger?

29-09-21

Ver o post original

Sopa à Luz de Uma Vela

David Haize

Sopa à Luz de Uma Vela

Receita

1 tomate

1 cebola

1 dente de alho

1 folha de louro

1 dúzia de pés de galinha

1 pitada de sal

1 colher de óleo

1 pedaço de pão

1 pai

1 filho

1 outro filho

1 mãe

forte serena discreta

remendando com fios celestes o dia a dia

e sem palavras agradecendo a Deus

por ela ter conseguido colocar comida na mesa

nessa mesa com uma vela

– falta luz elétrica por falta de pagamento –

trêmula chama da esperança

sobrevivendo ao ranger cotidiano

03-06-21

Ver o post original

De Falo em Flor

David Haize

De Falo em Flor

Passados os dias de furor

selvagem esplendor

roídos pelo Tempo

quando o falo em flor fala mais alto

e fustiga a razão

passada a estação

dos nardos e papoulas dançando o cio

quando o desassossego e a turbulência

travam as vísceras

lasso de ilusões remendadas

exausto

miro o alvo celeste

à procura de céus invertidos e constelações rebeldes

e na busca inglória

acoplo palavras à alma conectada

na ingênua esperança de reviver a alva

primitivo alvor

seco agora de magia e graça

como quando criança contava sete estrelas

e colocava um espelhinho sob o travesseiro

para refletir meu sonho

antes de acordar

para o que achava não ser o real

realidade doce-amarga

com sabor de chá verde e hortelã

03-06-21

Ver o post original

Emprego na Pandemia

David Haize

Emprego na Pandemia

Ele

Ela

Ele

Isso e puta é a mesma coisa.

Ela

Não é a mesma coisa.

Ele

É a mesma coisa que dar para macho em troca de dinheiro.

Ela

Eu não vou dar para macho.

Ele

Serão centenas ou milhares de machos te vendo.

Ela

Tomara haja milhares de machos me vendo. Seria sinal de que estaria ganhando algo para remediar a situação.

Ele

Puta também quer bastantes clientes para ganhar grana.

Ela

Pare de me chamar de puta. Nenhum homem vai me tocar. Esses homens vão apenas me observar pela internet.

Ele

Milhares de machos olhando tuas tetas, tua bunda e tua boceta.

Ela

Eu não vou mostrar a xota. Estarei de tanga e não vou tirar a tanga.

Ele

Vão te oferecer mais dinheiro para você tirar.

Ela

Mas não vou tirar.

Ele

Puta com pudor.

Ela

Pare de me chamar de…

Ver o post original 585 mais palavras

Ovo Quente

Ovo quente

Ela sorriu com os próprios pensamentos, enquanto colocava uma pitada de sal no ovo cozido com a gema mole.

Comentou alguma coisa sobre os filhos e outra sobre o que pretendia fazer no almoço de domingo. Discreta, mas um pouco ansiosa, deu uma olhada no relógio da parede.

O marido já engravatado comia uma torrada com manteiga, enquanto folheava a página de esportes do jornal.

A campainha tocou. Ele deu um salto assustado da cadeira.

– Deixa que eu atendo.

Saiu apressado da cozinha.

Sentada, saboreando o seu café da manhã, mas de orelha em pé, tentou reconhecer a voz do visitante, até ouvir o marido gaguejar:

– Já falei para você não aparecer aqui a esta hora!

O Escritor Roldan-Roldan Entrevista o Escritor David Haize

R.Roldan-Roldan Writer (novels, short stories, theatre, poetry) Brazil

O Escritor Roldan-Roldan Entrevista o Escritor David Haize

RR

Como você se sente com 38 livros publicados?

DH

Sinto-me satisfeito por ter construído uma obra, embora, como todo escritor que se preze, não estou satisfeito (pelo menos totalmente) com meus livros. Por outro lado, sinto-me frustrado por não ser reconhecido.

RR

Ao que você atribui o fato de não ter sido reconhecido até agora?

DH

Não estou na mídia, nem no meio acadêmico. E não escrevo livros comerciais. Estou remando contra a maré.

RR

O que você considera um livro comercial?

DH

Aquele escrito com o único intuito de agradar ao grande público – se é que existe um grande público de leitores.

RR

Sua obra, embora de teor surrealista, aborda temas e situações que não podem ser qualificados de populares. Em suas páginas encontramos a margem da sociedade. São seres excluídos por causa da etnia, de deficiência física ou…

Ver o post original 1.232 mais palavras